Confronto sem fim: o contemporâneo nas relações Israel-Palestina (2006–2020)
“Atualmente não há intenção de relaxamento e calma. Sangue palestino foi derramado. Não há lugar para conversas de paz com a ocupação israelense. Se eles querem proteger seu país dos mísseis do HAMAS, terão que colocar um domo de ferro em cada uma das casas de Israel.”
(tradução nossa)
Porta Voz do HAMAS, Fawzi Barhoum, após a incursão de 2014 em Gaza (disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/07/18/10-quotes-that-explain-the-history-of-the-gaza-conflict/).
O momento atual de paralisação das conversas entre palestinos e israelenses possui origem em 2006, quando os representantes do HAMAS foram eleitos para a Assembleia da Autoridade Nacional Palestina. O principal problema estava no fato de que as eleições foram consideradas pela comunidade internacional como justas e limpas. A escolha dos árabes palestinos nos Territórios Ocupados pela organização islamista possui raízes na insatisfação com o declínio dos Processos de Paz de Oslo, durante o início do século XXI. A escolha dos Estados Unidos, maior parceiro internacional de Israel, mostra como Washington via a situação: não houve reconhecimento do novo governo do HAMAS e os fundos de ajuda para os Territórios Palestinos secaram.
As tensões entre os dois grupos predominantes na política palestina passariam a crescer cada vez mais. O FATAH, dominante na Organização para Libertação da Palestina, baseava-se no nacionalismo secular e, por isso, era apoiado pela comunidade internacional como um todo, mesmo perdendo legalmente as votações. Do outro lado, o HAMAS passou a governar com apoio interno mas internacionalmente isolado, com instituições internacionais retirando doações para os palestinos e Israel se recusando a conversar qualquer matéria com o governo militante islâmico. Como resultado, as duas facções passaram a se engajar em um conflito civil uma contra a outra, com a Cisjordânia ficando em domínio do ex-grupo de Arafat e a Faixa de Gaza com o HAMAS. Isso levou ao questionamento: quão grande era a legitimidade do FATAH para negociar internacionalmente em prol do povo palestino?
Em 2005, o então Primeiro Ministro israelense Ariel Sharon decretou a evacuação das forças israelenses na Faixa de Gaza, em uma decisão muito polêmica. Entretanto, após as eleições, houve o medo de que o grupo de Sheikh Yassin pudesse usar a região como base para lançar ataques contra o Estado de Israel, o que de fato ocorreu. Dessa forma, em 2008, 2012 e 2014, Israel adentrou no território do HAMAS para retalhar atos do grupo palestino jihadista, em uma escalada de violência que destruiu ainda mais a frágil estrutura da região. Em todas elas, as perdas civis dos dois lados foram apontadas pelas Nações Unidas como uma clara violação do Direito Internacional, com ambos combatentes tendo como alvos civis. A incursão de 2014 para dentro de Gaza foi de longe a mais destrutiva de Israel: resposta direta ao sequestro e morte de três jovens israelitas, as Forças Armadas de Israel tinham como objetivo destruir uma série de túneis que ligavam o Egito, Gaza e Israel, com a justificativa de que era por ali que os terroristas entravam no país. Entretanto, a destruição dos túneis foi muito severa para a já cambaleante Faixa de Gaza: era por eles que grande parte dos moradores da região, vivendo sob ocupação aérea e marítima israelense conseguiam comida, remédios e materiais. A situação não se resolveu, os dois lados ainda continuam num jogo de ação e reação e se mostram mais do que dispostos a pegar em armas sempre que possível. A degradação em Gaza é tão grande que a ONU afirmou que, de 2020 para frente, a área se tornaria inabitável, o que só tende a piorar com a pandemia do COVID-19.
“O objetivo da operação é mandar Gaza de volta para a Idade Média. Só depois Israel ficará calma por 40 anos.”
(tradução nossa)
Ex-Ministro do Interior Israelense Eli Yishai sobre a operação feita em Gaza, 2012 (disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/07/18/10-quotes-that-explain-the-history-of-the-gaza-conflict/).
O problemático relacionamento com Israel é só um dos desafios que o novo governo palestino do HAMAS precisou enfrentar. Os protestos da Primavera Árabe, em 2011, impuseram fortes obstáculos ao grupo. O primeiro deles estava no Egito, quando os protestantes derrubaram o antigo presidente Hosni Mubarak e elegeram Mohamed Morsi como seu novo representante: Morsi fazia parte de um grupo chamado Irmandade Muçulmana, fundada no Egito em 1928 como uma reação à ocidentalização britânica, em favor de uma sociedade mais baseada nos ensinamentos do Alcorão. Dessa forma, o novo governo em Cairo representou um forte novo aliado para o HAMAS, que tinha um novo governo amigo na região, que inclusive ajudou a negociar um cessar-fogo com Israel em Gaza, 2012. Entretanto, apenas um ano após ser eleito, Morsi sofreu um golpe e foi deposto, sendo substituído por um novo governo muito mais acomodado com os israelenses e os Acordos de Camp David, que cortou relações com o HAMAS e destruiu cerca de 80% dos túneis do país que davam acesso à Gaza.
“Nós estamos nos movendo do ‘domo de ferro’ para o punho de ferro.”
(tradução nossa)
Naftali Bennett, ministro da economia israelense à época e atual primeiro-ministro de Israel, em resposta à provocação do HAMAS (https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/07/18/10-quotes-that-explain-the-history-of-the-gaza-conflict/).
O maior desafio político da organização, entretanto, foi no maior conflito ocorrido em decorrência da Primavera Árabe, a saber, a Guerra Civil Síria. Era nesse país que o HAMAS, após ser expulso da Jordânia em 1999, tinha localizado sua estrutura externa, em um relacionamento amigável ao também hostil à Israel, Bashar al-Assad. Quando os rebeldes islâmicos passaram a fazer oposição ao regime sírio, o HAMAS teve que fazer uma escolha crítica: ou permanecer abrigado no país, em conluio com Assad às custas de seus semelhantes ideológicos do ISIS, ou apoiar este lado e colocar em risco o relacionamento com o governo em Damasco e com o Irã, apoiador de Assad e fonte de grande parte do financiamento do grupo. A segunda opção foi escolhida e o grupo mudou sua sede para Doha, capital do Qatar, o que significou um rompimento do triângulo Irã, Síria e HAMAS, unido pelo ódio comum aos sionistas. Novamente, os residentes da Faixa de Gaza pagariam o preço: o governo em Teerã cortou cerca de 60% do apoio que dava ao HAMAS, piorando ainda mais as condições de vida no local. Em 2013, contudo, com a queda do governo Morsi e a guerra na Síria se arrastando sem vencedor claro, o HAMAS tentou voltar atrás e se reaproximar de seus antigos aliados. As conversas com o Irã voltaram e o país xiita restaurou o apoio dado aos seguidores de Yassin, tornando-se o maior Estado porta-voz internacional da tão tentadora causa da libertação palestina. Atualmente, as relações entre Teerã e HAMAS parecem estar encaminhando a uma nova era de amizade, com o país da Revolução Islâmica sendo o principal financiador da independência palestina nos moldes do islamismo político.
Enquanto isso, durante esse período, o FATAH, ainda em nome da Autoridade Nacional Palestina, também precisou lidar com os problemas que surgiriam após a derrota de 2006. Embora ainda a fonte de maior prestígio internacional entre os grupos palestinos, pelo seu cometimento com um fim para a questão baseada nas negociações e numa possível solução de dois Estados, o ex-grupo de Arafat havia perdido o prestígio interno. Portanto, para antagonizar Israel e suas medidas unilaterais, bem como para conseguir apoio dos árabes locais, a ANP passou a adotar uma nova estratégia após 2010: apelos diretos aos organismos internacionais para conseguir construir legitimidade. Ainda que, na realidade, isso não tenha levado ainda à formação de um Estado internacionalmente conhecido, nem uma melhora substancial no dia a dia da população palestina, essa tática serviu para chamar os holofotes do mundo de novo para a região, além de construir, pouco a pouco, uma aceitação internacional ao país. Os Estados Unidos e Israel, importante salientar, são totalmente contra essa tentativa de reconhecimento internacional passo a passo: os dois aliados permanecem firmes na retórica de que qualquer solução para o problema deve ser feita mediante conversas bilaterais mediadas por Washington. O quanto o governo israelense desrespeitou esse mesmo princípio desde os Acordos de Oslo e o quanto o papel dos estadunidenses enquanto mediador/aliado atrapalha obviamente não estão na retórica dos dois.
“Se a escolha é ser um Estado, Israel pode ser judeu ou democrática, não pode ser os dois, e nunca estará em paz… Como Israel reconcilia a permanente ocupação com seus ideais democráticos? Como os EUA continuam a defender isso e ainda sim viver de acordo com nossos ideais democráticos? Ninguém nunca deu respostas satisfatórias para essas questões simplesmente porque elas não existem.”
(tradução nossa)
Ex Secretário de Estado norte-americano John Kerry (disponível em: https://br.usembassy.gov/remarks-middle-east-peace/) .
O principal gatilho para essa mudança de postura veio em 2011, quando o governo Obama vetou no Conselho de Segurança uma resolução que classificava os assentamentos israelenses como ilegais. Ávida para mostrar que ainda tinha a legitimidade da luta palestina, a ANP optou pela ação unilateral e buscou dentro de todos os organismos do sistema ONU conseguir reconhecimento formal. Em 2012, o governo embrionário nascido em Oslo teve seu status alterado de “entidade observadora não-membro” para “Estado-observador não-membro”, uma alteração que, embora com poucos resultados práticos, já pode ser vista como primeiro passo para algo maior. Os parceiros Washington e Tel-Aviv, obviamente, não assistiram a tudo passivamente e puniram, como podiam, a ANP pelo gesto, cortando grande parte das verbas destinadas a ajudar os palestinos. Contudo, nem isso foi capaz de impedir a obstinada ANP de assinar, até o presente, mais de 20 convenções internacionais, algumas com o status de país. A mais importante dessas foi a aceitação, em 1º de Janeiro de 2015 do Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional, o que deu jurisdição a um organismo internacional para as disputas na relação palestino-judaica, como capacidade de julgar se o Estado de Israel comete crimes de genocídio, contra a humanidade e similares.
As pesquisas de opinião dentro dos Territórios Ocupados mostram que ainda não está resolvido o dilema. Tanto a estratégia internacionalista da ANP, como o islã político do HAMAS atraem consideravelmente o povo palestino, dificultando saber qual é, de fato, o caminho certo a se tomar. No início de 2016, uma série de ataques espontâneos de indivíduos palestinos ao redor do globo chamou a atenção do mundo, aumentando as tensões entre os dois lados novamente. Israel respondeu militarmente a esses ataques isolados e, segundo um político do LIKUD, já estava na hora do povo israelense compreender que o “terror palestino não pode ser derrotado com ferramentas democráticas”. O endosso do ocupante da Casa Branca, Donald Trump, de transferência da embaixada norte-americana de Tel-Aviv para Jerusalém relembrou ao mundo o quão estagnado o processo de paz estava desde 93: o país mais poderoso do mundo estava aceitando que um dos temas mais sensíveis para os dois lados, a divisão da Cidade Sagrada, estava unilateralmente resolvido em favor de Israel. Com essa carta branca da maior potência do mundo, o já conservador partido LIKUD agora prepara, pelo tom do Primeiro Ministro Netanyahu um movimento que pode trazer o pior dos cenários no futuro: Israel planeja anexar formalmente algumas regiões da Cisjordânia, um ato cujas consequências são incalculáveis. Embora não se saiba se o novo governo Bennett levará ou não a cabo tal iniciativa, não há perspectiva de uma melhora. Um dos porta-vozes do HAMAS já afirmou que, não importam as diferenças com a ANP, caso Israel realmente faça isso, os dois grupos considerarão uma “declaração de guerra”.
Assim se encontra o conflito entre palestinos e israelitas no meio da maior pandemia em um século. A situação em Gaza parece se deteriorar ao insustentável, enquanto Israel planeja incorporar áreas internacionalmente reconhecidas como palestinas. O processo de paz está parado, definhante e respira com a ajuda de aparelhos. Israel precisa cada vez mais encarar seu paradoxo inerente enquanto país judeu democrático: ou se mantém democrático e dá direitos iguais aos árabes em seu território, perdendo seu caráter judeu; ou mantém seu caráter judeu e se desfaz enquanto democracia, tornando-se o mesmo tipo de regime que os “heróis de 48” lutaram para combater. HAMAS e LIKUD parecem não querer nem um pouco uma resolução para o conflito, como se tivessem mais a ganhar com a perpetuação de um eterno inimigo que une seus respectivos povos do que com a coexistência. Alguns teóricos começam a ver a solução de dois estados, com um Estado Árabe Palestino e um Estado Judeu como virtualmente impossível e novos planos começam a ser elaborados, como a existência de apenas um país unindo os dois povos, o que representaria uma das maiores mudanças políticas do século XXI. Seja qual for o projeto, a realidade parece ser triste e desanimadora: a histórica briga entre palestinos e israelenses parece longe de ter seu fim.
“A continuidade da política de construção de assentamentos e sua expansão na Cisjordânia e na parte leste de Jerusalém, a designação de terra para uso exclusivo israelita e a recusa em permitir o desenvolvimento palestino está, em fato, acabando com a possibilidade de uma solução de dois Estados. Isso levanta questões legítimas sobre as intenções de longo-prazo de Israel, as quais são compostas por posicionamentos de alguns ministros israelitas de que nunca deve haver um Estado palestino.”
(tradução nossa)
Quarteto de Madri sobre a possibilidade de opções mais que a de dois Estados (disponível em: https://www.un.org/unispal/document/auto-insert-181686/).
FONTE DAS IMAGENS (ordem de aparição):
Cartaz em Israel se utiliza do famoso slogan de Donald Trump e o pede para fazer “Israel grande novamente”: https://english.alaraby.co.uk/opinion/trumps-one-state-solution-wont-be-equal-rights-one
Khaled Meshal, então líder do ramo sírio do HAMAS, é conhecido por ser o maior arrecadador de fundos do grupo: https://www.timesofisrael.com/khaled-mashaal-to-step-down-as-hamas-leader-report/
Benjamin Netanyahu (esquerda) aperta a mão do Presidente da ANP, Mahmoud Abbas (direita): https://www.middleeastmonitor.com/20180905-we-need-clarification-on-abbas99-per-cent-agreement-with-shin-bet/
Manifestantes palestinos queimam pneus perto da fronteira de Israel com Gaza, em 2018: https://www.timesofisrael.com/gazans-plan-border-protests-friday-to-thank-the-resistance-for-rocket-fire/
Primeiro Ministro do HAMAS, Ismail Haniya, discursa em Teerã com a imagem do líder da Revolução Islâmica, Aiatolá Khomeini, no fundo: https://www.aljazeera.com/opinions/2018/7/26/what-is-behind-the-hamas-iran-rapprochement/
Manifestantes pedem ao TPI “justiça para a Palestina”, em relação aos alegados crimes cometidos por Israel: https://www.theguardian.com/law/2019/dec/20/icc-to-investigate-alleged-israeli-and-palestinian-war-crimes
Netanyahu em 2019 mostrando as áreas que Israel pretendia formalmente anexar: https://www.axios.com/benjamin-netanyahu-annexation-plans-west-bank-fd3f3976-2e49-4733-81db-00c2da0139b3.html
Com a total paralisação das negociações de paz e a resolução do conflito, cada vez mais pessoas passam a discutir a possibilidade de um único Estado na região: https://www.amazon.com/One-State-Solution-Breakthrough-Israeli-Palestinian-Deadlock-ebook/dp/B07PH9262H
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
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______. The Israel-Palestine Conflict: One Hundred Years of War. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
KEYLOR, William R. The Twentieth-Century World and Beyond: An International History since 1900. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011.
HALLIDAY, Fred. The Middle East in International Relations: Power, Politics and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
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