Do Yom Kippur a Oslo: as décadas de 70 e 80 no conflito Israel e Palestina

GEOM UFU
11 min readDec 11, 2021

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“A diferença entre o revolucionário e o terrorista está na razão pelo qual cada um luta. […] os americanos em sua luta de liberação contra os colonizadores britânicos seriam considerados terroristas; a resistência europeia contra os nazistas seria terrorismo, a luta dos povos asiáticos, africanos e latino-americanos também teria sido terrorismo e muitos de vocês que estão nessa Assembleia já foram considerados terroristas.”

(tradução nossa)

Ex-Presidente da OLP, Yasser Arafat, em discurso para a Assembleia Geral da ONU em 1974 (disponível em: https://unispal.un.org/DPA/DPR/unispal.nsf/0/A238EC7A3E13EED18525624A007697EC).

Dois homens palestinos jogam pedras contra exércitos de ocupação israelense durante a Primeira Intifada, em 1987. A reação desproporcional de Israel se tornaria uma marca dos protestos.

O processo iniciado em 1993 que daria origem aos famosos Acordos de Oslo é a maior demonstração de paz entre os dois povos que disputam a predominância da Palestina que já existiu. Contudo, o espírito de coexistência, imortalizado pelo aperto de mão entre o presidente da OLP Yasser Arafat e o Primeiro-ministro Yitzhak Rabin, ainda teria que passar pelas décadas de 70 e 80, com mudanças profundas dos dois lados da disputa, para poder florescer. O período após o fim da Terceira Guerra Árabe-Israelense traria mudanças profundas em cada um dos envolvidos na Questão Palestina, moldando o terreno para as conversas que se seguiram na década de 90.

A paz selada em 1978 entre os dois principais Estados inimigos no Oriente Médio até então trouxe alterações consideráveis para a lógica da disputa. A assinatura dos Acordos de Camp David, entretanto, ficou muito longe de produzir o maior efeito esperado, ou seja, uma onda de acordos entre israelitas e seus rivais árabes, pondo fim à discussão. O processo de paz não envolveu a Organização para Libertação da Palestina, eleita pelas Nações Unidas em 1974 como o único organismo oficial de representação do povo palestino em uma questão que, no fim das contas, havia começado primeiramente com os palestinos. Como punição por ter “traído” a causa palestina, o Egito foi suspenso da Liga Árabe e afastado de qualquer assunto que tivesse ligação com a divisão da Palestina. Camp David, na realidade, só serviu para mostrar a Arafat que suas previsões estavam corretas: o povo palestino não poderia contar com mais ninguém na luta contra Israel.

Arafat em discurso na Assembleia Geral da ONU em 1974.

“Yasser Arafat e eu sabíamos o que estava prejudicando a causa palestina. Nós estávamos convencidos, por exemplo, de que nós palestinos não podíamos esperar nada dos regimes árabes, a maior parte corrupta ou amarrada ao imperialismo […]. Nós acreditávamos que os palestinos só podiam contar com si mesmos.”

(tradução nossa)

Ex-companheiro de Arafat na OLP em carta anônima (disponível na obra de James Gelvin referenciada abaixo)

O intervalo de 20 anos entre Camp David e Oslo se mostraria desafiador também para a OLP. O advento de Arafat ao poder e a queda de Nasser livrou a organização de todas as suas rédeas, uma vez que a militância passou a ficar cada vez mais agressiva, com incursões para dentro do Estado de Israel, vindo dos países vizinhos com intuito de chamar atenção ao problema. Em 1970, o rei da Jordânia, onde ficava a sede da OLP, decidiu que os palestinos dentro do território haviam se tornado um problema muito grande, ameaçando a estabilidade do país. Nesse contexto, em Setembro daquele ano, estourou um conflito entre soldados jordanianos e os guerrilheiros da OLP: o sangrento confronto, conhecido como Setembro Negro, resultou na expulsão dos membros da OLP daquele país. Arafat e seus fiéis seguidores encontrariam no Líbano, na fronteira norte com Israel, o local adequado para manter suas atividades, mescladas entre pressões diplomáticas e terroristas, até o ano de 1982. As dificuldades impostas por Israel à OLP foram consideráveis no período, o que fica claro pela mudança no discurso: o objetivo inicial da organização era estabelecer um Estado em toda região historicamente conhecida como Palestina mas, vendo que isso era virtualmente impossível, passou a ser a criação de um mini-Estado nos Territórios Ocupados, ou seja, Faixa de Gaza e Cisjordânia.

Em amarelo, o território pensado para o estabelecimento do Estado da Palestina.

O Líbano sempre foi um Estado importante para a segurança de Israel. Não só por fazer fronteira com o país, mas também por ser uma nação essencialmente instável, nascida de um Mandato Francês e com uma mistura étnica e religiosa que sempre ameaçava desestabilizar o país. A chegada, em 1970, de um contingente palestino vindo da Jordânia em fuga só serviu para aumentar, e muito, as preocupações israelitas. Após uma tentativa de assassinato por membros da OLP do embaixador israelense na Inglaterra, o governo israelita deu um basta e invadiu o sul do Líbano, em 1982. Embora a expectativa geral fosse de ansiedade com medo de uma Quarta Guerra Árabe-Israelense, o governo da nação judia assegurou que a única intenção era recuperar a estabilidade da fronteira norte e “quebrar a espinha dorsal” da OLP. Entretanto, não foi apenas isso que aconteceu, já que as semanas se passavam e as forças israelitas iam adentrando cada vez mais em território libanês. A organização da OLP, em fuga, só conseguiu sair do país após os Estados Unidos ajudarem na evacuação de seus membros para Tunes, no norte da África. A recusa dos países árabes próximos de receberem os “problemáticos” seguidores de Arafat e a distância entre a capital da Tunísia e os Territórios Ocupados enfraqueceram fortemente a autoridade da OLP, estimulando o surgimento de grupos que desafiariam, no futuro, sua autoridade.

“Deve-se esperar que essas coisas ocorram após 20 anos de ocupação. As pessoas perderam a esperança. Elas estão frustradas e não sabem o que fazer. Elas se viraram ao fundamentalismo religioso como sua última esperança. Elas desistiram de esperar que Israel as dê direitos. Os Estados árabes são incapazes de fazer qualquer coisa e elas sentem que a OLP, que é quem as representa, falhou com elas.”

(tradução nossa)

Ex-Prefeito de Gaza, Rashad al-Shawwa (disponível na obra Enemies and Neighbors: Arabs and Jews in Palestine and Israel, 1917–2017, de Ian Black (2018)).

A Guerra do Líbano, talvez pela primeira vez na história, quebrou a unidade nacional dentro de Israel. Ainda que o país obviamente tivesse pensamentos socioeconômicos diferentes, havia um determinado consenso de que o enorme poderio militar era defensivo e legítimo. O cerco de 10 semanas à parte muçulmana da capital Beirute mudou essa visão: a invasão ao Líbano foi vista mais como uma escolha do que uma necessidade, como nas Guerras anteriores. A defesa do sonho sionista passou a ser, internacionalmente, associada com a supressão e a dominação das pessoas palestinas, mesmo indefesos refugiados que não estavam dentro do Estado de Israel: a imagem internacional do país passou a ficar cada vez mais comprometida. A revelação dos acontecimentos nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, quando as forças israelenses permitiram a entrada de milícias cristãs libanesas que massacraram cerca de 2500 palestinos sem distinção, chocou profundamente a opinião interna judaica. Protestos passaram a ocorrer em todo o país: nas universidades israelitas, uma nova classe de historiadores passou a reexaminar toda a história do Estado de Israel, desafiando todos seus mitos criadores e remodelando a história nacional (essa escola é predominantemente a fonte das opiniões do autor desse texto).

Inscrição com a data do massacre protagonizado pela Falange libanesa com autorização do Exército de Israel em Sabra e Chatila.

Dentro dos Territórios Ocupados palestinos, a situação dos árabes locais continuava sem resolução. As restrições em liberdades, próprias da ocupação israelita no local, era a principal marca do dia a dia dos habitantes da região: o sentimento geral era de uma relação de dominação política, econômica e sobretudo psicológica exercida pelas Forças Armadas Israelenses. A demissão forçada de Ariel Sharon, ministro da defesa à época da Guerra do Líbano não adiantou a situação: qualquer ganho mínimo que o governo israelita pudesse esperar ganhar com a saída do futuro primeiro-ministro, famoso por ser linha dura e ter participado de ações terroristas durante sua juventude, não se materializou. Após os acontecimentos de 1982, a disposição dos locais de manter o status quo na região passaria a ser cada vez menor, enquanto suas condições de vida só caíam; tudo que faltava era uma centelha de faísca no barril de pólvora.

Em 1987, um acidente de carro na Faixa de Gaza começou uma série de protestos locais contra a ocupação israelense. Rapidamente, essas manifestações se espalharam em toda a região designada para o Estado árabe que estava sob interferência israelense. Começava a Primeira Intifada, palavra derivada do árabe de “levante”: a comunidade internacional e israelita, da noite para o dia, foi pega de surpresa pelas diversas manifestações de civis, muitas vezes portanto pedras e paus, contra a ocupação. Entretanto, qualquer vantagem que a OLP logo pudesse tirar do confronto, mostrou-se ilusória, uma vez que os protestos não tinham como único alvo a autoridade de Israel, mas também uma forte crítica à própria forma de se conduzir a política palestina, altamente paternalista em torno de Arafat e distante do dia a dia da população, com sua base em Tunes. Como de costume, a resposta emanada de Tel-Aviv foi truculenta e, em poucos dias, as imagens de jovens palestinos lançando pedras contra soldados israelenses e recebendo de volta tiros e partes do corpo quebradas rodaram o mundo todo. Chegou-se até a especular que foi uma ordem direta das lideranças militares do país para que os soldados quebrassem as mãos e braços dos protestantes para que não conseguissem atirar objetos. O fato de os protestos se arrastarem sem que Israel conseguisse conter as revoltas populares fez com que o público do país, já desconfiado após a Guerra do Líbano, passasse a pensar cada vez mais nos custos da manutenção dos Territórios Ocupados.

Mulheres palestinas protestam contra soldados israelenses armados em 1987. Segundo relatos, os dois homens após a foto as dispersaram com gás de pimenta nos olhos.

Após um tempo de liderança descentralizada, enquanto movimentos espontâneos brotavam em toda Palestina, as organizações apoiadas pela OLP passaram a se sobressair. Contudo, as coisas nunca mais seriam as mesmas: o descontentamento com a inabilidade de Arafat de dar um fim às ocupações fez com que muitos jovens se virassem para outro tipo de organização. A legitimidade da OLP enquanto “única representante legítima das aspirações palestinas” seria ameaçada de dentro. Os partidos de cunho militante político-muçulmano não eram um fenômeno novo, mas a partir da Primeira Intifada começaram a ganhar cada vez mais visibilidade para a população local descontente. Naquele ano, Sheikh Yassin, líder local da Irmandade Muçulmana, com intuito de reengajar jovens palestinos na luta contra Israel, criaria um novo braço da Irmandade, muito mais alinhado com táticas terroristas e com islamismo político que o nacionalista-secular FATAH de Yasser Arafat: estava fundado o HAMAS. A principal inspiração de Yassin foi Izz ad-Din al-Qassam, morto por forças britânicas em 1935, o que levou à eclosão da Grande Revolta Árabe, vista como prelúdio da Primeira Intifada.

“Iniciativas como as chamadas soluções pacíficas e conferências internacionais estão em contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmico.

Não há solução para a Questão Palestina que não seja a jihad (guerra santa). Iniciativas, propostas e conferências internacionais são todas uma perda de tempo e vãos empreendimentos.

O Movimento de Resistência Islâmico é um dos elos na cadeia de luta contra os invasores sionistas.”

(tradução nossa)

Manifesto do HAMAS (disponível em: https://irp.fas.org/world/para/docs/880818a.htm).

Declaração do HAMAS após visita do Presidente Bolsonaro à Israel em 2019, avisando que os laços próximos trariam consequências ao Brasil.

A maior consequência dos protestos de 1987 foi o Processo de Paz dos Acordos de Oslo. Pela primeira vez na história, israelitas e palestinos se juntaram para decidir o tão aguardado desfecho do conflito que se estendia há um século. Entretanto, embora o processo se tenha desenrolado após o fim da Guerra Fria, quando existia uma certa onda de esperança em todo o mundo de que toda polarização política poderia ter uma solução pacífica, os motivos que levaram à mesa de negociação Israel e a Organização para Libertação da Palestina não eram tão nobres assim. Do lado dos israelitas, havia a vontade de mostrar para a Comunidade Internacional que a péssima impressão que o país passava a quase todos, com a repressão desproporcional contra os jovens árabes protestantes e com o cerco de Beirute, não era real e que o país ainda continuava totalmente disposto a negociar um fim pacífico ao problema. Já no que tangia à OLP, Arafat estava desesperado para conseguir qualquer acordo que produzisse frutos para sua reputação, pois não só estava politicamente isolado após apoiar Sadam Hussein na Guerra do Golfo, em 1991, mas também a distância a que se encontrava dos Territórios Ocupados minava cada vez mais seu papel enquanto líder palestino, ameaçado pelo HAMAS.

As conversas que se iniciaram a partir disso mudariam toda a lógica do conflito. Quase toda relação entre Israel e Palestina no advento do século XXI estaria diretamente relacionada àquilo que se conversaria em Oslo e que, infelizmente, estaria fadado ao fracasso, como se pode ver atualmente. Contudo, na época, o mundo inteiro se alegrou quando Yitzhak Rabin e Yasser Arafat apertaram aos mãos, com o presidente Clinton no fundo: era a prova, para toda a humanidade, de que as semelhanças que unem os diferentes povos da Terra eram mais fortes do que qualquer diferença nacionalista que os separassem.

Yitzhak Rabin (esquerda) aperta as mãos de Yasser Arafat (direita): o “Espírito de Oslo” enchia o mundo de esperança em 1993.

Eu não aceitarei um acordo dizendo que, ao final do dia, Haifa, Jaffa e Acre são cidades israelenses e partes da terra de Israel… O que deve se buscar é uma solução verdadeira, que irá restaurar todos os direitos dos palestinos e que acarretará no fim da existência dessa entidade (Israel) na região.

(tradução nossa)

Osama Hamdan, representante do HAMAS no Líbano (disponível em: https://www.memri.org/tv/hamas-representative-lebanon-osama-hamdan-we-will-not-accept-solution-which-haifa-jaffa-and-acre).

FONTE DAS IMAGENS (ordem de aparição):

Dois homens palestinos jogam pedras contra exércitos de ocupação israelense durante a Primeira Intifada, em 1987. A reação desproporcional de Israel se tornaria uma marca dos protestos: https://www.aljazeera.com/news/2017/12/10/stories-from-the-first-intifada-they-broke-my-bones/

Arafat em discurso na Assembleia Geral da ONU em 1974: https://www.npr.org/sections/parallels/2014/01/11/261390545/a-feud-that-lasted-a-lifetime-ariel-sharon-vs-yasser-arafat

Em amarelo, o território pensado para o estabelecimento do Estado da Palestina: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-14630174

Inscrição com a data do massacre protagonizado pela Falange libanesa com autorização do Exército de Israel em Sabra e Chatila: https://www.aljazeera.com/features/2012/9/16/survivors-recount-sabra-shatila-massacre

Mulheres palestinas protestam contra soldados israelenses armados em 1987. Segundo relatos, os dois homens após a foto as dispersaram com gás de pimenta nos olhos: https://www.middleeastmonitor.com/20171209-the-first-intifada-showed-that-if-we-stay-silent-we-lose/

Declaração do HAMAS após visita do Presidente Bolsonaro à Israel em 2019, avisando que os laços próximos trariam consequências ao Brasil: https://sul21.com.br/ta-na-rede/2019/04/hamas-diz-que-acoes-de-bolsonaro-em-israel-ameacam-lacos-brasileiros-com-nacoes-arabes-e-islamicas/

Yitzhak Rabin (esquerda) aperta as mãos de Yasser Arafat (direita): o “Espírito de Oslo” enchia o mundo de esperança em 1993: thinc.info/palestinians-present-contradictory-claims-regarding-oslo-accords/

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

BAXTER, Kylie; AKBARZADEH, Sharam. Middle East Politics and International Relations: Crisis Zone. Nova Iorque: Routledge, 2018.

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GELVIN, James. The Modern Middle East. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011.

______. The Israel-Palestine Conflict: One Hundred Years of War. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

KEYLOR, William R. The Twentieth-Century World and Beyond: An International History since 1900. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011.

HALLIDAY, Fred. The Middle East in International Relations: Power, Politics and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

ROGAN, Eugene L. The Emergence of the Middle East into the Modern State System. FAWCETT, Louise (Ed.). International Relations of the Middle East. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2016.

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TESSLER, Mark. The Israeli-Palestinian Conflict. LUST, Ellen (Ed.). The Middle East. 14. ed. SAGE Publishing, 2017.

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Somos um Grupo de Estudos em Oriente Médio, idealizado por alunas do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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