GEOM Explica #1: Islã Político

GEOM UFU
9 min readFeb 3, 2022

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Autoras:

Mariana Carvalho Garcia

Carolina Porta Rodrigues

O ISLÃ

O Islã é a religião muçulmana e significa “submeter-se”, ou seja, remete à ação de obedecer a Allah. Essa religião tem seu início em Maomé, um profeta que recebeu do anjo Gabriel os princípios básicos do Islã e junto com as suas profecias o Alcorão, livro sagrado islâmico, é organizado. Nesse prisma, o islã se fundamenta em 5 pilares: proclamação da fé, oração, caridade compulsória, o jejum do Ramadã e a peregrinação à Meca. Devido aos grandes fluxos de migração, a religião islâmica está se espalhando e ganhando adeptos em todo o mundo, o que leva pesquisas, como as do Pew Research Center, afirmarem que que, até 2070, o islã será a maior religião do mundo (POLITIZE, 2021) .

O Império Árabe tem sua gênese no islamismo. Isso porque até o século VII a região arábica era extremamente fragmentada, com diferentes tribos, reinos e povos autônomos. Nesse contexto, Maomé foi o responsável pela unificação da região peninsular. De acordo com Karen Armstrong, foram as mudanças na vida social da região de Meca, na qual Maomé viveu, que o faz buscar uma ideologia que ajudasse a sua tribo a se adaptar às novas realidades. Assim, Maomé recebeu diversas influências, principalmente do Judaísmo e do Cristianismo e estabeleceu uma nova religião. A proposta de Maomé era que esta religião pudesse superar as divisões tribais e as novas condições de vida e unísse os árabes (COGGIOLA, 2007).

As caravanas eram importantes para entender a idiossincrasia do povo árabe. Ao passo delas, semeia-se “cultura em desenvolvimento”, os árabes não só precisam de um mercado, mas também e ao mesmo tempo de um conhecimento universal para poder comerciar, por isto o povo muçulmano seria “multicultural”, como garantia de sobrevivência comercial, rasgo que desenvolve a sua famosa tolerância, como forma de vida em frente ao “outro”, sua compactuação com a alteridade. É, a dos povos árabes, uma atomização em movimento permanente, em caravanas que vão da China até o sul da África (HURTADO, 2006 apud COGGIOLA, 2007, p. 6).

Maomé, após a sua hégira e a reconquista de Meca, inica uma peregrinação anual, na qual se fez presente e demonstrou todos os rituais que deveriam ser seguidos nas próximas visitas. Em 632, Maomé morre, a Arábia é unificada e assim o império se espande dominando inúmeras sociedades orientais e ocidentais, ampliando seu conhecimento e absorvendo a cultura de outros povos (COGGIOLA, 2007).

Quando se fala sobre islamismo, a associação mais rápida e estigmatizada é com o extremismo. Devido à uma visão carregada de preconceitos, essa religião é automaticamente ligada a atos terroristas e ao fundamentalismo, práticas que não representam os muçulmanos e nem o alcorão. O islã é um religião com seus costumes, crenças, que pregam suas tradições e que, muitas vezes, se encontra em meio a uma repressão de estigmas e julgamentos ocidentais (MARQUES, 2021). Atualmente, estima-se que há 1,4 bilhões de muçulmanos, em que apenas 20% são nativos de países árabes. Sob esse viés, além do islã como a religião conhecida, hoje podemos falar também do islã político.

O ISLÃ POLÍTICO

A priori, é importante diferenciar o fundamentalismo do islã político. O fundamentalismo é uma tendência que surge em meados do século XIX de pregadores e teólogos seguidores do cristianismo e instituem a prática de interpretar as palavras seguidas ao pé da letra, sendo contra tudo que propusesse mudar ou questionar a “verdade bíblica”. No caso do islã, é um movimento que surgiu no Egito no século XX e busca a criação de um Estado Islâmico (COGGIOLA, 2007).

O conceito de “fundamentalismo islâmico” designa hoje a aspiração da instauração de um estado islâmico, a introdução da sharia, do direito islâmico e do seguimento das normas de Maomé e dos primeiros quatro Califas Sunitas, sem no entanto renunciar aos benefícios da técnica moderna. (…) Na verdade, o termo “fundamentalista” (usuli) existe no Islão desde há séculos: a palavra designa, no sentido tradicional, apenas os académicos da ilm al-usul, a ciência que se dedica ao estudo do fiqh (direito islâmico) (COGGIOLA, 2007, P. 17).

Por outro lado, o Islã Político diz respeito ao uso de termos, símbolos e tradições islâmicas com a finalidade política, em resumo, os partidos e o desenvolvimento das políticas têm como base o Islã, ou “a busca por um sistema político condizente com a fé (TIBI apud MARASCHIN, 2015, p.11). Com o objetivo de unir a comunidade muçulmana transnacional (umma) (COGGIOLA, p. 16), o surgimento do islã político está intimamente ligado à ideia de superar o declínio de seus regimes e de que através dos preceitos islâmicos puros será possível retornar à “idade de ouro”.

Nesse sentido, durante a I Semana do Oriente Médio — UFU, o Prof. Dr. Fábio Nobre explica que ao buscar compreender o porquê dos regimes árabes não conseguirem prosperar, os intelectuais árabes chegaram à conclusão de que seus governos se afastaram das tradições do islã e, na prática, seriam bastante secularistas. Seguindo essa lógica, tais pensadores buscavam remontar ao período de glória dos antigos impérios: omíadas, abássidas e otomanos.

HISTÓRICO

O início do Islã político remete à criação da Irmandade Muçulmana, no Egito, alguns anos após a queda do Império Otomano em 1924. O movimento, idealizado por Hassan Al-Banna, teve origem em um contexto de questionamentos e críticas sobre a presença europeia na região do Oriente Médio. Do mesmo modo, ele se opôs ao colonialismo britânico e defendeu a causa palestina (LE MONDE DIPLOMATIQUE, 2000).

Além disso, a Irmandade teve filiais na Síria, Jordânia e Palestina. Outros movimentos que seguiram essa mesma linha foram o Movimento de Tendência Islâmica na Tunísia e a Frente de Salvação Islâmica da Argélia. Com o desenvolvimento do nacionalismo árabe, essa irmandade sofreu proibições e esclareceu um conflito de interesses entre os nacionalistas árabes e os “fundamentalistas”. O nacionalismo pan-arábico tem as suas raízes na Segunda Guerra Mundial, na qual os nacionalistas árabes se alistam na Liga Árabe, enquanto os árabes judeus e comunistas se alistam no exército britânico. As forças políticas palestinas apoiaram a Inglaterra (opressora histórica do Oriente Médio), mas as massas não concordavam (COGGIOLA, 2007).

Os nacionalistas-militares ficaram sozinhos na luta anti-imperialista, relegados às limitações do nacionalismo e constantes derrotas, enquanto toda a esquerda se alinhou aos antigos opressores. Nesse sentido, a Conferência de Bandung foi essencial para criar a identidade árabe em meio ao conflito capitalismo x socialismo, visando projetar internacionalmente o pan-arabismo. Esse movimento, a princípio, não estava ligado ao Islã e sim à ideia de unir povos de mesmas tradições, língua e cultura. Entretanto, na Irmandade Muçulmana duas linhas vinham se formando, aquela que acreditava em uma ação política de “islamização das bases da sociedade” sem violência e aquela que acreditava na islamização a partir da conquista do poder, essa última se aliou ao Al-Fatah (Movimento de Libertação Nacional da Palestina) em 1958–1959 (COGGIOLA, 2007).

Sob esse viés, é interessante destacar a Revolução Islâmica do Irã. A monarquia iraniana de Mohammad Reza Shah Pahlavi foi derrubada em 1979 e instaurou-se no lugar dela um regime com base no Islã político. A revolução iraniana foi importante para retomar a autonomia identitária do país, buscando descolonizar o pensamento e recuperar a sua autenticidade (GOMES, 2007). Para Ruhollah Khomeini, o cidadão iraniano deveria se firmar em termos religiosos para ser um ator social para além da Sha’ria, provando que política e religião podem coexistir sob a mesma proposta revolucionária. No caso iraniano, a revolução popular decorreu da “fé e da cultura de resistência à injustiça” (GOMES, 2007, p. 87).

A revolução iraniana adicionou ao modelo tradicional de revolução o revivalismo religioso como um ativo capaz de transformar as massas insatisfeitas em massas revolucionárias. Tal transformação política derivou de um conjunto de estruturas e estratégias próprias entre os agentes religiosos e as diferentes categorias de leigos, e protagonizou novos arranjos sócio-políticos visando a satisfação dos interesses envolvidos na revolução (HOBSBAWM, 2005, p. 441 apud GOMES, 2007, p. 87).

CORRENTES

Vale ressaltar que assim como o Islão religioso não é um bloco monolítico, o Islã político possui diversidade de vertentes dentro do seu movimento. Assim , é incorreto pensar que todos os islamitas são violentos, ou contrários à democracia. Ao observarmos os tipos de atuação do Islã podemos perceber pelo menos três divisões: o islamismo político ou moderado, o islamismo missionário e o islamismo militante. O primeiro grupo tem uma agenda reformista, rechaça a violência, aceita o Estado-nação e busca tomar poder a nível nacional. Já no islamismo missionário não tem a política como principal objetivo, seu maior interesse, na verdade, é converter os não crentes, além de preservar a ordem moral e a identidade muçulmana. Por fim, o islamismo militantes ou jihadista se utiliza da violência para lutar contra os infiéis, seja em âmbito interno (contra muçulmanos hereges ou corruptos), seja global (contra um inimigo distante, em especial países ocidentais, como Estados Unidos) (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2005; SHAHIN, 2005 apud MARASCHIN, 2015, p.14) .”

IMPORTÂNCIA SOCIAL

Por se utilizar de diversos símbolos e ideias reconhecidas por muçulmanos de diferentes realidades, o movimento tem a capacidade de atingir pessoas com diversas situações sociais e econômicas.(EICKELMAN; PISCATORI, 1996 apud MARASCHIN, 2015, p.13).Também, conforme o que já foi dito anteriormente, para além da doutrina religiosa, o islã político é acatado por muitas pessoas em razão de seu papel social:

A aderência aos ideais islamistas não se limita, contudo, à linguagem e às instituições religiosas: entre os fatores que explicam a grande capacidade mobilizadora do ativismo islamista hoje estão a eficácia de seu trabalho educativo, social, cultural e sanitário com a população mais pobre; a crítica da ineficácia do discurso e da prática política do Islã oficial/”estatal”; a reivindicação da essência do Islã originário; o fracasso das estruturas tradicionais e dos modelos ocidentais; e as constantes injustiças que os muçulmanos continuam a sofrer nas mãos do ocidente e de seus aliados (AYOOB, 2004; TAMAYO, 2009 apud Maraschin, 2015, p.13)

Sendo assim, além de uma resposta anticolonialista e uma busca pela autonomia e pela verdadeira identidade da umma, o islã político também ocupa um lugar estratégico no preenchimento de necessidades socioeconômicas e na resposta às demandas das populações locais. Nesse contexto, os islamistas entendem que o Estado deve ter seu funcionamento fundamentado nos valores islâmicos (MARASCHIN,2015, p.12).

CONCLUSÃO

É muito importante entender a história do Islã político, as suas vertentes e a sua contemporaneidade, especialmente quando estamos inseridos em uma realidade estigmatizada e absorta em noções ocidentais. Ao entender as diferenças entre o processo histórico pelo qual passaram as sociedades islâmicas do Oriente e no Ocidente, é possível olhar para a política do Oriente Médio com novas lentes.

Nesse sentido, compreende-se que o Islã não é apenas uma religião que se limita à fé, mas sim, é um conjunto de ideias capaz de guiar os diversos aspectos da vida das comunidades muçulmanas. Mais do que isso, nossa pesquisa também evidenciou que a presença do Islã no âmbito político tem caráter anticolonial, posto que surgiu como uma resposta à presença de potências estrangeiras no território muçulmano. Além disso, verificamos que o Islã político está inserido nos governos e organizações a partir de diversas vertentes e nem todas são violentas, ou contrárias às práticas democráticas.

Por fim, ressaltamos que as conclusões tiradas a partir dessa breve análise não representam um consenso na academia, ao contrário disso, o debate que existe discute se o islã político seria de fato uma tentativa de resistência do povo islâmico ao imperialismo do Ocidente, ou se ele atuaria, por vezes, em prol das grandes potências. Dessa forma, fica claro que há uma interessante discussão sobre o papel do Islã Político no Oriente Médio, a qual não foi completamente desenvolvida nesse artigo e que pode ser aprofundada em estudos posteriores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COGGIOLA, Osvaldo. Islã histórico e islamismo político. Disponível em: https://www.icarabe.org.br/sites/default/files/pdfs/reflexoes_sobre_o_mundo_arabe_contemporaneo_-_aula_7b.pdf. Acesso em: 31 de jan. 2022.

GOMES, Eduardo Teixeira. A revolução iraniana na perspectiva de Khomeini: representações e paradigmas de um governo islâmico xiita (1979–1989). Disponível em: http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/3375/1/tese_3305_Eduardo_Teixeira_Gomes.pdf . Acesso em: 02 de fev. 2022.

KRISTIANANSEN, Wendy. VENTOS NOVOS OU ACOMODAÇÃO? “Irmãos Muçulmanos” divididos. LE MONDE DIPLOMATIQUE, 2000. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/irmaos-muculmanos-divididos/>. Acesso em 31 de jan. 2022

MARQUES, Marília. O que é o Islã? Muçulmanos e pesquisador explicam pilares da religião. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/09/03/o-que-e-o-isla-muculmanos-e-pesquisador-explicam-pilares-da-religiao.ghtml. Acesso em: 31 de jan. 2022.

MARASCHIN, Natália Regina Colvero. Islã político: surgimento e evolução, do século XIX ao século XXI. 2015

PET GEOGRAFIA UFU. SEMOM — “A religião e o Estado no Oriente Médio” Youtube. 26 de jan. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EmG2y36azIM&t=4750s>. Acesso em 31 de jan. 2022

POLITIZE. Islamismo: como é a religião muçulmana?. Disponível em: https://www.politize.com.br/islamismo-como-e-a-religiao-muculmana/. Acesso em: 31 de jan. 2002.

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