Na terra de Israel, qualquer um que não acredita em milagres não é um realista
(tradução minha).
David Ben-Gurion, primeiro Primeiro Ministro e fundador do Estado de Israel.
Trecho tirado da obra referenciada de James Gelvin no fim do texto
Começa-se pelo simples: o Estado de Israel é uma nação existente no Oriente Médio desde 1948. É definido pela sua Constituição como Estado judeu e democrático. Interessante notar que, à época de sua criação, fora apoiado tanto pela superpotência capitalista norte-americana, quanto pela sua arqui inimiga URSS, baluarte do comunismo mundial. Desde então, muito se tem debatido sobre a legitimidade dos atos deste país, mas você sabe por que ele existe?
O ponto central desse texto não é sobre os rumos da história pelos quais o já criado Estado de Israel se enveredaria, mas sim, justamente sobre seu nascimento. Dessa forma, possui como objetivo analisar o surgimento oficial, o desenvolvimento e a realização do movimento sionista. Isto é, a crença de que os judeus têm o direito à autodeterminação e, por isso, formam um grupo nacional e, portanto, merecem um Estado próprio.
Na realidade, o sionismo não difere fortemente dos outros movimentos nacionalistas que surgiram na Europa à época. Sua premissa é a de que os judeus formavam um grupo social diferente de quaisquer outros com quem conviviam: possuíam língua, história, valores e cultura comuns e, portanto, deveriam ter o direito de escolher quem os governaria enquanto unidade, como e onde. Sua base histórica está no Haskalah, também chamado Iluminismo Judeu, que preconizava aliar as noções religiosas judaicas com os conceitos políticos europeus próprios do século XVIII. Possui esse nome porque vem de “Sião”, nome bíblico da cidade de Jerusalém. Às vésperas do século XX, entraria em cena a figura mais importante da história de Israel, um daqueles mitos nacionais cuja existência beira à devoção para a memória de uma nação: o advogado judeu Theodor Herzl (1860–1904).
Herzl foi um judeu nascido no Império Austro-Húngaro, mas que passou a devotar sua vida ao movimento sionista a partir da famosa Questão Dreyfus, em 1894, Paris. De forma breve, o Caso Dreyfus consistiu no julgamento de um capitão da marinha francesa, Alfred Dreyfus, acusado de ser um espião alemão. Entretanto, para a opinião comum na Europa, a condenação por traição do capitão francês, mesmo com insuficientes provas, tinha outra motivação: Dreyfus tinha cometido o crime de ser um judeu bem sucedido em uma França fervorosamente católica. Em outras palavras, foi o latente antissemitismo que o condenou.
Mas ora, se em plena belle époque, período em que se enxergava a França como modelo para toda a humanidade, os judeus não estavam salvos do preconceito, quando e onde, então, eles poderiam estar? A resposta de Herzl: em lugar nenhum, a menos que se criasse um lar nacional para judeus. Começava ali o sonho judaico de se restabelecer na Palestina. Afinal de contas, no entendimento deles, a região era uma terra sem população e, portanto, perfeita para uma população sem terra.
Historicamente, as percepções de Herzl não estavam totalmente equivocadas. A comunidade judaica, após ser expulsa da Palestina pelos romanos no século I, migrou em quantidade considerável para a Europa: a própria ideia de exílio e retorno à terra seria fortemente explorada posteriormente. Com o início da Era Moderna, as Guerras Religiosas na Europa Ocidental e o posterior advento do Estado-nação, a vida dos judeus se complicou: alguns foram obrigados a se converterem, outros foram expulsos de suas terras, alguns massacrados e outros marginalizados, mas todos sistematicamente atacados, culminando nos pogroms, demonstrações públicas de antissemitismo na Europa Oriental a partir do século XVIII. Assim surgiu a ideia de que os judeus eram “criaturas nada confiáveis”, pois os laços que uniam os judeus dos diferentes países era maior do que os que os uniam aos seus compatriotas, ou seja, nunca poderiam ser 100% integrados à vida nacional de algum país. Daí então a facilidade com a qual passaram a ser bode expiatório para quando as coisas não ocorriam do jeito esperado. Embora precursores do movimento sionista, como Leo Pinsker (1821–1891), tenham enfatizado a importância da assimilação dentro do país em que viviam como forma de integração, ainda não era suficiente. Com a palavra, Herzl, em seu famoso artigo “O Estado Judeu”, de 1896:
“A questão judaica ainda existe. Seria tolice negar isso. Ela existe em qualquer lugar onde os judeus vivam em números consideráveis. Onde ainda não existe, será trazida pelos judeus no curso de sua migração. Nós naturalmente nos movemos para aqueles locais onde não há perseguição e nossa presença logo gera perseguição. Isso é verdade em todos os países e continuará sendo até naqueles altamente civilizados — a França não é uma exceção — até que a Questão Judaica encontre uma solução em base política […]
Nós somos um só povo. […] Em vão nós somos leais patriotas; em vão fazemos os mesmos sacrifícios […]Nos países em que vivemos por séculos, ainda somos tratados como estranhos. […]
Nós somos um só povo — nossos inimigos assim nos fizeram. A angústia nos une, e consequentemente unidos, nós de repente descobrimos nossa força. Sim, nós somos fortes para formar um Estado, um Estado modelo. […]
A Palestina é nossa casa histórica sempre na memória. A própria ideia de mudar para lá poderia atrair muita da nossa gente com uma força de extraordinária poderosa. […]
(tradução minha)
A partir de 1897, Herzl organizaria então um Congresso Sionista, que viria a criar a Organização Sionista Mundial (OSM), porta-voz oficial do movimento. Após definir que o objetivo da criação de um Estado judeu deveria ser feita de forma diplomática, a OSM saiu em busca de apoiadores para seus objetivos. Embora a migração judia para a região da Palestina já existisse, foi apenas no ano de 1917 que o movimento sionista logrou sua primeira importante vitória: a Declaração Balfour. Era uma carta, do ex primeiro ministro e então secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, Arthur James Balfour, dirigida ao Barão Rothschild, pertencente a uma das, senão a mais, conhecidas famílias judias no mundo e líder da comunidade judaica do Reino Unido. Embora o texto não diga explicitamente que se criaria um Estado judeu, já foi o suficiente para dar forma às aspirações sionistas. Aliás, a Inglaterra desempenharia papel fundamental na contenda.
Prezado Lord Rothschild,
[…]
“O Governo de Sua Majestade vê com simpatia o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu e fará seus melhores esforços para facilitar a conquista desse objetivos, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos religiosos e civis das comunidades não judaicas existentes na Palestina ou os direitos e condições políticas usufruídas pelos judeus em qualquer outro país.”
Trecho em inglês disponível no link: https://www.bbc.com/portuguese/geral-41842505
A partir dos ditos de Balfour, a OSM começou a estimular cada vez mais a ida de judeus para a Palestina, com ondas imigratórias que ficariam conhecidas pelo termo hebreu aliyot. Foram principalmente determinantes para a história de Israel a segunda e a terceira aliyot, pois muitos desses imigrantes fundaram as instituições base da vida local, que seriam posteriormente parte do Estado de Israel, da Yishuv, como era conhecida a comunidade judaica na região. Esses judeus eram jovens e solteiros, com uma mentalidade mais trabalhista e desbravadora, baseada no socialismo utópico: entre as figuras importantes dessa “leva” estava grande parte dos futuros componentes do Partido Trabalhista, que dominaria inicialmente a política israelita. Seu lema era “conquistar a terra e conquistar o trabalho”, ou seja, organizar a vida social para que os judeus ocupassem o maior número de trabalhos disponíveis.
Obviamente, a tentativa de “monopolização” da vida na região trouxe protestos dos moradores árabes locais, mas era uma resistência defensiva e sem caráter político ou nacionalista: eles ainda se viam como súditos do Império Otomano. Aliás, isso seria fator preponderante para o predomínio israelita no fim das contas: os imigrantes judeus tinham uma consciência e um projeto nacional definidos, com instituições definidas, enquanto os árabes ainda se viam como otomanos e, quando o Império colapsou, dividiram-se entre o nacionalismo árabe, o palestino e o sírio. O impacto da divisão ocidental da região em mandatos foi enorme: até então, palestinos e sírios viam-se como um mesmo povo que deveria formar uma nação única. Segundo o artigo VIII da Resolução do Congresso Geral Sírio de 1919:
Nós alegamos que não deve haver separação da parte sudoeste da Síria, conhecida como Palestina.[…] Nós desejamos que a unidade do território seja garantida de partição sob quaisquer circunstâncias.
(tradução minha)
Trecho tirado da obra referenciada de James Gelvin no fim do texto
A posterior divisão do Oriente Médio em mandatos franceses e britânicos extinguiu a possibilidade do nacionalismo sírio, visto que as regiões foram separadas. O caminho árabe também perdeu sua força porque aqueles outros que estavam sob tutela britânica, na região, não conviviam com os mesmos problemas que os palestinos: a penetração, cada vez maior, dos assentamentos judaicos em suas terras, economia e sociedade. Com isso, a partir da década de 20, a Palestina passa a conviver com dois nacionalismos totalmente diferentes: o palestino e o sionista. Soma-se a isso o fato de os ingleses terem incluído a Declaração Balfour no documento oficial do Mandato da Liga das Nações. Com ambos alegando direitos de criar sua nação na região, era de se esperar que uma hora as conversas dariam lugar à confrontação.
A década de 30 pode ser definida como o ponto em que a coexistência cessou de sua pacificidade. As demonstrações de antissemitismo cada vez maiores na Europa, com a ascensão de Hitler ao poder, impulsionaram exponencialmente a emigração de judeus para a região, desarticulando o frágil equilíbrio — se ainda havia algum. Dessa vez, os judeus imigrantes da aliyot se diferiam muito dos que vieram antes: eram homens e mulheres mais adultos, de mentalidade burguesa e reacionária, com horror ao bolchevismo e muito mais radicais em suas reivindicações; dali veio a grande parte dos que formariam a direita e a extrema-direita do país. Para aumentar ainda mais o clima de hostilidades, a população palestina tinha uma sociedade essencialmente rural: com a flutuação e queda brusca dos preços das commodities agrícolas, causadas pela Grande Depressão de 1929, muitos se encontraram em situação de pobreza, sem opção que não vender suas terras para judeus. Soma-se a isso a hostilidade com a qual os árabes enxergavam e se opunham ao domínio inglês. Com tanta pólvora em volta do barril, era certo que uma hora ele explodiria.
A primeira explosão veio em 1936, com o que ficaria conhecido como Grande Revolta e seria caracterizado como conflito civil por ainda não se tratarem de comunidades nacionalmente distintas. Os britânicos responderam os atos com severa violência contra os árabes, empregando táticas que, até hoje, o Estado de Israel utiliza. Como resultado não só da ação inglesa, mas da ferocidade com a qual os árabes trataram suas elites, exigindo grandes sacrifícios em prol da causa, muitos palestinos socialmente eminentes deixaram a terra, fazendo com que o padrão de vida caísse ainda mais se comparado ao dos judeus.
A comunicação inglesa com a população local era feita principalmente pelos chamados Livros Brancos, nos quais a autoridade britânica definia as regras locais. Em 1939, o governo britânico na região emitiu um deles, que daria a tônica do que aconteceria nos anos seguintes. O documento prezava pela limitação dos assentamentos judaicos, a criação de um Estado na região (sem especificar a quem ele seria dado) e a retirada britânica da região dentro de 10 anos — a expirar em 1948. Como não atendia os interesses de nenhum dos dois nacionalismos, no fim das contas, foi recusado por ambas partes, embora fosse um documento oficial e não dependesse da vontade da população para fazer efeito.
Após sair da Segunda Guerra Mundial em frangalhos, tanto em termos econômicos, quanto políticos, a Inglaterra precisava repensar sua lógica colonial por completo. Nesse sentido, viu a permanência de suas tropas locais e de seu aparato colonial na região como muito onerosa, sem que tivesse um retorno econômico que correspondesse aos esforços para evitar as confusões entre os grupos rivais. Em 1947, resolveu submeter a Questão Palestina aos auspícios da recém criada Organização das Nações Unidas (ONU), que criou o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina. A Assembleia Geral votou e aprovou a Resolução 181: previa a divisão do território entre as duas comunidades, ao fim do mandato britânico, criando o Estado de Israel e o Estado da Palestina, com a cidade de Jerusalém, sagrada para três religiões, sob administração internacional. Os judeus foram a favor do movimento; os palestinos foram inflexíveis em sua recusa de coexistência; os Estados árabes vizinhos ameaçaram o uso da força caso a resolução fosse implementada.
Entretanto, antes que se pudesse pensar na implementação da resolução, uma guerra civil estourou entre os dois nacionalismos: começava a Guerra Civil Palestina. No dia seguinte à saída das tropas britânicas na Palestina, em 14 de Maio, teve início aquilo que seria o maior acontecimento da história do Oriente Médio desde, talvez, as conquistas pelo Império Otomano, cerca de 500 anos antes. Estava realizado o sonho de meio século do movimento sionista. Iniciado antes, posto em prática por Herzl e agora nascido pela mão de David Ben-Gurion. Quase simultaneamente, os países árabes invadiam a região e declaravam guerra à Israel: começava a Primeira Guerra Árabe-Israelense. Em um hotel, o lado judeu da Guerra Civil celebrava a Declaração de Independência do Estado de Israel:
“A terra de Israel foi o lugar onde nasceu o povo judeu. Aqui sua identidade espiritual, religiosa e nacional foi formada. Aqui eles conquistaram independência e criaram uma cultura de significado nacional e universal. Aqui eles escreveram a Bíblia e a deram ao mundo.
Exilado da Palestina, o povo judeu se manteve fiel a ela em todos os países de sua dispersão, jamais cessando de orar e esperar por seu retorno e pela restauração de sua liberdade nacional.
Impulsionados por este vínculo histórico, os judeus lutaram através dos séculos por voltar à terra de seus pais e recuperar seu país. Nas últimas décadas, eles voltaram em massas. Eles recuperaram o deserto, reviveram sua língua, construíram cidades e aldeias e estabeleceram uma comunidade vigorosa e crescente com vida econômica e cultural. Eles buscaram a paz, mas sempre estiveram preparados para se defender. Eles trouxeram a bênção do progresso para todos os habitantes do país.
[…]
Este reconhecimento pelas Nações Unidas do direito do povo judeu a estabelecer seu Estado independente não pode ser revogado. Ele é, ademais, o direito auto-evidente do povo judeu de ser uma nação como todas as outras nações, em seu próprio Estado soberano.
ASSIM, NÓS, os membros do Conselho Nacional, representando o povo judeu na Palestina e o movimento sionista do mundo, reunidos hoje em assembleia solene, no dia do término do Mandato britânico na Palestina, em virtude do direito natural e histórico do povo judeu e da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas,
AQUI PROCLAMAMOS, o estabelecimento do Estado Judeu na Palestina, a ser chamado ISRAEL.”
FONTES DAS IMAGENS (ordem de aparição):
Atual território do Estado de Israel em laranja: https://geology.com/world/israel-satellite-image.shtml
Theodor Herzl (1860–1904): https://www.timesofisrael.com/basel-event-to-mark-120-years-since-herzls-first-zionist-congress-scrapped/
Texto original da Declaração Balfour: https://www.myjewishlearning.com/article/the-balfour-declaration/
Imagem do mandato britânico na Palestina, posteriormente dividido entre Palestina e Transjordânia (futuro Reino da Jordânia): https://www.bbc.com/news/world-middle-east-54116567
Guerreiros palestinos durante a Grande Revolta de 1936: https://br.pinterest.com/pin/473440979549410105/
Plano de Partilha dos dois Estados em 1947 (recusado pelos árabes):
David Ben-Gurion, primeiro líder do novo Estado, lê a Declaração de Independência de Israel. Detalhe para o quadro de Herzl acima: https://www.timesofisrael.com/israels-declaration-of-independence-may-14-1948/
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
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