O início: A Inglaterra e o conflito árabe-israelense

GEOM UFU
10 min readNov 18, 2021

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A polêmica divisão da Palestina, território situado no Oriente Médio, é, sem dúvidas, um dos pontos que mais desperta curiosidade quando se fala sobre o Oriente Médio. Entretanto, há sempre a questão que paira no ar, principalmente no Brasil, região historicamente não envolvida no conflito e entendida como distante: o que é a Palestina? Por que ela possui tanto valor? Há algo naquele ínfimo espaço que justifique quase cem anos de conflitos e extensas conversas entre judeus e palestinos? Mesmo que haja uma abordagem marginal desses assuntos em muitos cursos de ensino secundário ou superior, a temática é muitas vezes vista como complexa demais para ser abordada mais profundamente.

Área geográfica conhecida atualmente como Palestina.

Pensando nisso, o Grupo de Estudos Sobre Oriente Médio da Universidade Federal de Uberlândia (GEOM-UFU) traz uma série de 10 textos que possuem o intuito de explicar, de forma simples e didática o conflito árabe-israelense, cobrindo a questão desde seu surgimento até a atualidade. Os textos serão postados duas vezes por semana, às segundas e quintas feiras. Para isso, o grupo montou uma equipe de alunos de Relações Internacionais dispostos a trazer, com base em bibliografias recentes e atualizadas sobre a temática, questionamentos, problematizações e exposições sobre um dos maiores e mais controversos conflitos do último século.

O primeiro texto versa sobre o domínio da Inglaterra no território palestino, fundamental para o início do conflito e ponto de partida para entender a Questão Palestina. Para compreender melhor a divisão colonial do Oriente Médio e como essa região do globo foi “criada”, recomendamos a leitura dos textos anteriormente publicados no perfil: “A formação contemporânea do Oriente Médio” e “O que é o Oriente Médio?”.

O contexto histórico do “Império onde o sol nunca se põe” no Oriente Médio, principalmente no século XX, está ligado ao desmembramento do Império Otomano, vizinho sempre incômodo do chamado Concerto Europeu de Estados do século XIX. Islâmico e um pouco alheio às ideologias fervilhantes na Europa da época, a região de capital em Istambul sempre foi vista com olhos diferentes pelas potências europeias, que reconheciam a importância do Império para manutenção do equilíbrio de poder no Mediterrâneo, principalmente como forma de contrabalancear o poder do gigante russo, sempre faminto de mais terras e do tão sonhado controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, na atual Turquia. Contudo, conforme o poderio não apenas militar, mas sobretudo econômico das potências europeias aumentavam, também aumentava a relação desigual com o parceiro muçulmano: durante o fim do século XIX e início do XX foram impostos diversos tratados unilaterais aos otomanos, cerceando a soberania da região e dando aos estrangeiros presentes no território cada vez mais autonomia e poder.

“O colapso do Império Otomano e a forma como o território árabe foi dividido imediatamente após a Primeira Guerra Mundial teve um efeito profundo sobre a história contemporânea do Oriente Médio”. (Artigo: The Fall of the Ottoman Empire and Current Conflict in the Middle East, Yassamine Mather, 2014, p.1)

“Por que, então, o Império Otomano, que havia sobrevivido a tantos desafios à sua existência, finalmente caiu no rescaldo da Primeira Guerra Mundial?” (PALMER, 1992, p. 292) Livro: The Decline and Fall of the Ottoman Empire, Alan Palmer.

(traduções nossas)

Quando da conflagração da Primeira Guerra Mundial, em 1914, o Império Otomano, ao se aliar com as Potências Centrais, a saber Alemanha e Áustria-Hungria, deu o passo final rumo ao abismo que lhe parecia inescapável desde a virada do século. Ao fim da Guerra, quatro anos depois, o Império fora desmembrado, separado em diversos outros Estados menores, majoritariamente muçulmanos e com a Turquia sendo reconhecida como herdeira do glorioso sultanato que, um dia, pusera ponto final na história do Império Romano. Mas qual a relação da Inglaterra com isso? Toda. Durante a guerra, os ingleses sistematicamente buscaram ajuda de personalidades fortes na região para organizar uma luta interna contra a autoridade otomana. Um desses homens foi o xarife de Meca, Hussein bin Ali, ao qual fora prometido, como contraparte da ajuda, prestígio e controle sob a região, o que Ali interpretou como carta-branca para criação de um reino-árabe na região. A partir disso, organizou-se a Revolta Árabe, um movimento de dentro do Império Otomano contra o domínio turco, em favor dos Aliados na Primeira Guerra Mundial.

Hussein Bin Ali (1853–1931), xarife de Meca.

Todavia, a história é cheia de contradições e, se algo era a especialidade dos governos ingleses da primeira metade do século XX, era a dubiedade de suas promessas e ações. Em 1917, o secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, Arthur Balfour, redigiu uma carta ao Barão Rothschild, líder da comunidade judaica do Reino Unido, no qual afirmava que os serviços do governo de “Sua Majestade” estariam voltados para a construção de um lar judaico na Palestina. A “Declaração Balfour”, como viria a ser conhecida, não preconizava a criação de um Estado judeu propriamente dito, mas era usada como arma e instrumento pelos sionistas que desejavam construir um lar para si na região. Estava assim configurado o primeiro problema: como conciliar as promessas feitas à família Hachemita, interpretada como promessa de uma unidade árabe como recompensa pela ajuda na guerra, com as igualmente amplas promessas feitas aos judeus palestinos da criação de um “lar”?

Cópia da Declaração Balfour (1917).

A ação inglesa na região deterioraria ainda mais a partir dos anos 1920. Com a criação da Liga das Nações, os princípios que norteariam a política mundial a partir de então, pelo menos na América do Norte e na Europa Ocidental, estavam baseados na moralidade, na autodeterminação e na crença de que os povos livres constituiriam uma comunidade pacífica. Todavia, isto representava uma grande incoerência com as estruturas imperiais francesas e britânicas, que ainda mantinham possessões coloniais em todo o globo e que ansiavam pelos espólios do falecido território otomano. A forma como a Sociedade das Nações encontrou de conciliar os novos princípios da diplomacia de Woodrow Wilson com as antigas visões europeias de Realpolitik (o realismo geopolítico) foi digna das (in)ações que transformariam a Organização Internacional no exemplo histórico clássico de hipocrisia e “cegueira seletiva”. Estava, a partir de então, criada a categoria do “mandato”, como forma de controle político: em teoria, servia para que uma sociedade civilizada (leia-se Inglaterra ou França) assumisse a tutela de determinado território até que a civilização mais atrasada dentro dele ganhasse maturidade para ter autonomia; na prática, era uma divisão de regiões entre os dois parceiros imperialistas em termos relativamente coloniais.

A bandeira usada na Revolta Árabe contra o Império Otomano foi ironicamente desenhada por Mark Sykes e, posteriormente, serviu de base para diversas outras bandeiras da região.

Desse modo, em 1920, o Oriente Médio era “repartido”, com chancela da Liga das Nações, entre áreas de influência francesa e inglesa, como resultado dos acordos de Sykes-Picot, assinados de forma secreta em 1916. Começava ali o controle formal dos britânicos na região. Para administrar melhor, a área foi separada em duas: à leste do rio Jordão, com uma canetada, criou-se a Transjordânia, posteriormente conhecida apenas como Jordânia, dada a um dos filhos de Hussein bin Ali; à oeste, a Cisjordânia, a qual somada com as regiões entre as colinas de Golã ao norte e a península do Sinai ao sul se chamaria Palestina. A partir de então, a imigração judaica para a região passou a crescer exponencialmente, principalmente porque a Declaração Balfour foi anexada no documento formal do Mandato, de forma que muitos judeus se estabeleceram com o sonho de transformar a região em seu lar. Permanecia a questão no ar: a cada ano que passava e com cada vez mais chegada de imigrantes judeus para a região, a Inglaterra, na posterior independência do território, a daria para qual grupo social?

“… no contexto da Primeira Guerra, o significado histórico das caras de McMahon e as discussões de Sykes-Picot são claras e inequívocas: eles mostram que em 1915 os aliados da Entente concordaram com a desintegração do Império Otomano, com a ajuda de uma exploração controlada de nacionalismo árabe” (PALMER, 1992, p. 260)

(tradução nossa)

Divisão do Oriente Médio pela Liga das Nações.

Os judeus, vindos de regiões sobretudo da Europa, estavam muito mais acostumados com o modo de vida e os ditames da civilização europeia e criavam cada vez mais instituições para regular o cotidiano local. Os árabes locais, apoiados na legitimidade enquanto residentes históricos da região, organizavam cada vez mais boicotes à crescente ocupação da Yishuv (ocupação judaica na Terra Santa). Para os residentes, ficava cada vez mais claro que britânicos e judeus eram um inimigo comum, os quais subjugavam a maioria da população islâmica, principalmente no fato de que, por serem historicamente uma comunidade de comerciantes e ligados à finanças, os judeus controlariam a vida econômica regional.

No decorrer da década de 30, a escala de violência aumentou consideravelmente: o número de judeus não parava de aumentar, motivados pelas demonstrações antissemitas na Europa, os árabes locais se revoltavam cada vez mais, indo de simples boicotes ao uso de violência contra os outros grupos étnicos. Tudo isso, somado ao cada vez mais dúbio papel da Inglaterra de fazer concessões a ambos os lados levou ao embrião daquilo que seria a marca do conflito pelo restante do século: uma comunidade árabe desestruturada, organizada em guerrilhas e de apelo populista, contra uma comunidade judaica paranoica com sua própria segurança, usando-se de força sobrenatural para se sentir menos ameaçada.

Imagem da “Grande Revolta Árabe” (1936–1939), contra o sionismo e o colonialismo britânico na região.

A cartada final se daria após os horrores da Segunda Guerra Mundial, do holocausto e a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). A queda do Eixo e o fim da Guerra marcam também o fim de qualquer aspiração inglesa de predominância mundial e ascensão incontestável dos Estados Unidos. Nas possessões do vasto Império Britânico, a retórica anticolonial crescia cada vez mais, apoiada nas premissas da ONU de autodeterminação e, se o controle nas áreas de vital importância para a sobrevivência imperial, como a Índia, tornava-se cada vez mais difícil, pode-se imaginar que territórios de menor importância estratégica não teriam futuro diferente. Assim, militarmente esgotados e economicamente em frangalhos, os britânicos se viram cada vez mais incapazes de conciliar o nacionalismo islâmico de um dos lados com as reivindicações sionistas do outro. Nesse sentido, sem nenhuma capacidade de contornar a situação e, verdade seja dita, sem mais muito interesse em tentar apaziguar os dois lados, a Grã-Bretanha submeteu a questão para a ONU, a qual passou a elaborar o Plano de Partilha da Palestina, com apoio das duas superpotências da época, a União Soviética e os Estados Unidos.

A partir de 1947, as coisas começaram a ir ladeira abaixo de vez. O Plano propôs aquilo que já era minimamente aceito por quase toda a comunidade internacional, menos os novos países árabes: a chamada solução de dois países. Seria criada uma nação árabe, com 45% do território total e uma nação judaica, com 55% das terras. A Cidade Sagrada de Jerusalém seria internacionalmente administrada. Embora essa divisão tivesse sinal relativamente verde dos judeus, o lado árabe não estava disposto a ceder. Começava assim, a Guerra Civil Palestina, que duraria até 1948, ano em que também se encerrava o mandato britânico na região. Não foram raros atentados terroristas de ambas as partes, destacando-se a presença de futuros líderes de ambos os lados, como o famoso Ariel Sharon, futuro primeiro ministro de Israel, participando de diversos atentados contra os árabes.

“Os judeus devem viver dentro e ao redor de cada centro populacional árabe… os judeus não devem deixar um único lugar onde não vivam e tenham liberdade de movimento” (Ariel Sharon em entrevista para Time Magazine em 5 de outubro de 1981); fonte: BBC.

(tradução nossa)

No dia 14 de Maio de 1948, acabava a Guerra Civil Palestina, com a retirada completa das tropas inglesas na região, largando os dois contendores à própria sorte, não apenas vítimas, obviamente, mas presos em um processo que havia se iniciado e se prolongado com clara participação e culpa britânica. A Guerra Civil Palestina era, de um lado, o fim de um longo processo de ocupação inglesa, estimulando os antagonismos existentes entre islâmicos e judeus na região e de outro, apenas o início de uma série de conflitos internacionais. Não teve seu fim pois se chegara a um acordo, mas sim porque, exatamente um dia após a retirada das tropas britânicas, deixando um vácuo de poder que sempre fora preenchido por uma autoridade maior, o Estado de Israel declarou sua independência, transformando o que antes era um conflito civil em uma guerra internacional. Começava a Primeira Guerra Árabe-Israelense.

Plano de partilha da Palestina aprovado pela ONU em 1947, em Assembleia presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha.

FONTES DAS IMAGENS (ordem de aparição):

Área geográfica conhecida atualmente como Palestina: https://www.arabicnadwah.com/articles/palestinian_tragedy.htm

Hussein Bin Ali (1853–1931), xarife de Meca: https://menafn.com/1100268341/Jordan-marks-death-anniversary-of-Sharif-Hussein-Bin-Ali

Cópia da Declaração Balfour (1917): https://www.myjewishlearning.com/article/the-balfour-declaration/

A bandeira usada na Revolta Árabe contra o Império Otomano foi ironicamente desenhada por Mark Sykes e, posteriormente, serviu de base para diversas outras bandeiras da região: http://lostislamichistory.com/how-the-british-divided-up-the-arab-world/

Divisão do Oriente Médio pela Liga das Nações: https://newellta.weebly.com/whii-11.html

Imagem da “Grande Revolta Árabe” (1936–1939), contra o sionismo e o colonialismo britânico na região: http://en.fatehnews.org/2020/04/great-palestine-revolt-1936/

Plano de partilha da Palestina aprovado pela ONU em 1947, em Assembleia presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha: http://www.mythsandfacts.org/replyonlineedition/chapter-4.html

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

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KEYLOR, William R. The Twentieth-Century World and Beyond: An International History since 1900. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011,

HALLIDAY, Fred. The Middle East in International Relations: Power, Politics and Ideology. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

ROGAN, Eugene L. The Emergence of the Middle East into the Modern State System. FAWCETT, Louise (Ed.). International Relations of the Middle East. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2016.

SMITH, Charles. The Arab-Israeli Conflict. FAWCETT, Louise (Ed.). International Relations of the Middle East. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2016.

TESSLER, Mark. The Israeli-Palestinian Conflict. LUST, Ellen (Ed.). The Middle East. 14. ed. SAGE Publishing, 2017.

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