Resenha: “A ganha-pão” (2017)

GEOM UFU
5 min readSep 1, 2021

--

O filme “A Ganha Pão” (The Breadwinner) de 2017 é um drama de produção canadense-irlandês-luxumburguês dirigido pela irlandesa Nora Twomey, lançado oficialmente no Brasil em 1 de junho de 2018. Além de ter sido indicado a premiações importantes, como o Oscar e o Globo de Ouro, afastou-se do cenário predominante em animações, sendo baseado na trilogia homônima da escritora canadense Deborah Ellis, resultado de sua viagem ao Afeganistão em 1997.

O filme retrata a história de Parvana, uma garota afegã de 11 anos vivendo em Cabul (Afeganistão) no início dos anos 2000, que trabalhava com seu pai (Nurullah), um ex-soldado com ferimentos de guerra, na venda de objetos pessoais para prover o sustento da família. Depois da prisão injusta de seu pai, Parvana se vê obrigada a vestir-se de menino para continuar o amparo do restante de sua família, sua mãe, sua irmã mais velha e seu irmão caçula.

Para contextualizar, o filme se passa em um período que coincide com a ocupação do Talibã no país, que se iniciou em 1994. O Talibã é um movimento político e fundamentalista religioso que emergiu no Afeganistão após a retirada das tropas soviéticas e o colapso do regime comunista, que desencadearam uma guerra civil no país. O grupo, formado pela maioria Pashtun, ganhou relativo apoio popular com suas promessas de segurança e restauração da paz, no entanto, também pretendia combater influências ocidentais ao impor uma visão distorcida da Sharia, a lei islâmica. As medidas do grupo se tornaram cada vez mais extremas, como a proibição de qualquer influência ocidental, execuções públicas e a restrição sistemática dos direitos femininos.

Nessa perspectiva, um ponto fundamental representado na animação é a relação entre o governo Talibã e a diminuição dos direitos das mulheres. Durante o domínio do grupo sobre o Afeganistão até 2001, várias restrições no que tange à educação, trabalho e mobilidade da mulher tornaram-se leis. Algumas dessas regras podem ser observadas no filme como a necessidade de uma presença masculina para sair de casa ou fazer compras, o que impossibilitava que as mulheres fossem independentes ou mesmo tivessem uma vida sem a presença e obediência ao homem, motivando o casamento forçado, especialmente em casos de mulheres que não tinham parentes homens que as pudessem auxiliar.

Ademais, ao proibir que as mulheres estudem nas escolas e muito menos cheguem às universidades, o grupo extremista impossibilita uma educação formal para as meninas. Há, também, o impedimento ao trabalho feminino, sendo a única exceção a área da saúde visto que as mulheres não podiam ser atendidas por homens. Essas restrições aos direitos das mulheres entre os cinco anos de dominação do Talibã no país as levou a um cenário de praticamente prisão domiciliar.

Ao analisar cenas retratadas na animação, é possível perceber claramente o tratamento degradante relegado às mulheres. Quando Parvana se disfarça de menino, o contraste é evidente, sendo permitido que ela transite livremente pelas ruas e mercados; sob essa nova circunstância o comércio e a vida pública não lhe são negados. O manto de aparência masculina é visto como um escudo que relativamente a protege do desprezo, do descaso e da violência externa. Entretanto, vale ressaltar que mesmo como um menino, Parvana suporta maus-tratos de adultos em posição de poder, como imposição de trabalho pesado, insultos e agressão. Isso demonstra o quanto o ambiente era hostil, beligerante e nocivo, o que afetava principalmente mulheres e crianças.

De forma análoga às situações demonstradas no filme, há o caso real da afegã educadora social, Nadia Ghulam. Nadia teve sua casa bombardeada quando tinha apenas 9 anos; depois de passar meses em coma, ela teve que lidar com o pai sofrendo de danos psiquiátricos permanentes e, logo depois, a morte do irmão. Por isso, Nadia decide enfrentar o sistema se disfarçando de homem para que consiga manter a si mesma e a mãe durante 10 anos. A educadora social fala sobre o que viveu em seu livro “O segredo do meu turbante”, publicado em 2010, quatro anos depois de ela se mudar para a Espanha, onde mora atualmente.

Um aspecto otimista do filme é a presença de histórias paralelas contadas pelos personagens que se entrelaçam ao longo da trama principal. Essas fábulas transmitidas ao longo da animação atuam como reflexos simbólicos dos eventos que se desenrolam em tela, seja como um meio de interpretação da realidade ao seu redor, mas também como uma fonte de alento e inspiração para a protagonista, que contempla essas lendas como provas de resistência de seu povo contra as adversidades passadas. Além disso, essas histórias compõem a imagem de um Afeganistão que já foi vibrante, próspero e pacífico no passado, impedindo que se consolide apenas estereótipos negativos sobre o local, ao demonstrar que os horrores atuais nem sempre foram presentes, e consequentemente, também não permanecerão para sempre.

Dessa forma, a animação é um retrato fiel e revoltante da condição das mulheres afegãs no auge do governo Talibã, além de proporcionar maior divulgação dessa situação para o mundo ocidental e para a população em geral. A metalinguagem que permeia o filme, já que é em si uma narrativa que valoriza o papel das histórias como veículo de compreensão do mundo, também colabora para o enriquecimento e o impacto da obra.

Atualmente, com a recente volta do domínio Talibã no Afeganistão, o temor das mulheres que vivem no país é significativo ao enfrentar a possibilidade de ter os direitos adquiridos nos últimos 20 anos violados e retirados. Com isso, a comunidade internacional apresenta muita desconfiança sobre essa tomada do poder no país levando em conta o primeiro governo do grupo que, além de desrespeitar os direitos humanos, serviu como esconderijo de integrantes do grupo terrorista, Al-Qaeda.

REFERÊNCIAS

BRITANNICA. Taliban: Political and religious faction, Afghanistan. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Taliban. Acesso em: 30 ago. 2021.

ESTUDAR FORA. Talibã e Mulher. Disponível em: https://www.estudarfora.org.br/taliba-e-mulheres/. Acesso em: 30 ago. 2021.

FOLHA. Em livro, afegã conta como se vestiu de homem por 10 anos para sobreviver ao Talibã. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/em-livro-afega-conta-como-se-vestiu-de-homem-por-10-anos-para-sobreviver-ao-taleban.shtml. Acesso em: 30 ago. 2021.

POLITIZE. Talibã e sua atuação no mundo do terrorismo. Disponível em: https://www.politize.com.br/taliba-terrorismo/. Acesso em: 30 ago. 2021

--

--

GEOM UFU
GEOM UFU

Written by GEOM UFU

Somos um Grupo de Estudos em Oriente Médio, idealizado por alunas do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

No responses yet